André Mendonça e a [anti?] religião dos seus opositores - Artigo do GECL/IBDR para o jornal GAZETA DO POVO

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA GAZETA DO POVO

André Mendonça, durante sabatina no Senado, afirmou que “na vida, a Bíblia; no Supremo, a Constituição”.| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

No último dia 1.º de dezembro, depois de mais de 100 dias de espera, ocorreu a sabatina de André Mendonça, o “terrivelmente evangélico”, na fala do presidente Jair Bolsonaro. Desde a redemocratização, os evangélicos têm desempenhado um importante papel na política brasileira. Entretanto, acadêmicos, jornalistas e políticos expressaram preocupação sobre o impacto desses novos atores do sistema em diversos temas, tais como liberdade de expressão, laicidade, tolerância e os direitos civis, como se os evangélicos representassem alguma ameaça à laicidade do Estado e à própria democracia.

Não apenas os opositores à sua indicação manifestaram-se fortemente quando da aprovação de Mendonça, mas também, por sua afirmação “Na vida, a Bíblia; no Supremo, a Constituição”, muitos dos que o apoiam por conta de sua fé expressaram algum tipo de insatisfação. Parece-nos, contudo, que aqueles que se opõem à existência de um magistrado evangélico na mais alta corte do país fazem-no por motivos que, mesmo sem perceber, podem ser tão religiosos em sua essência quanto muitos daqueles que lhe dão suporte. Por isso, faz-se necessário analisar os fatos à luz da Constituição, da melhor doutrina, da filosofia e da ciência política, a fim de dirimir qualquer resquício de má compreensão sobre a laicidade colaborativa brasileira e sua aplicação na política e na mais alta corte de Justiça do país.

Apesar de promulgada “sob a proteção de Deus”, a Constituição brasileira manifesta claramente, em seu artigo 19, a impossibilidade de ingerência estatal no âmbito religioso, exceto para a consecução de objetivos comuns que promovam o bem comum, na forma da lei, ao que se denomina laicidade colaborativa, nos termos do inciso I do dispositivo apontado – “ressalvada [...] a colaboração de interesse público”.

Há de se diferenciar, ainda, a laicidade daquilo que é chamado de laicismo. Enquanto o primeiro assemelha-se mais ao ordenamento jurídico anglo-saxão e apregoa a não interferência do poder público no âmbito religioso, o segundo tem sua gênese na Revolução Francesa e visa negar a participação religiosa na esfera pública, a ponto de, com a marginalização da religião, eliminá-la da res publica. Tal confusão ocorre praticamente todas as vezes que se vê despontar uma liderança cristã no cenário político. Foi o que ocorreu com o protagonista da vez, cuja posse está marcada para o próximo dia 16 de dezembro, quando passará a ocupar uma cadeira na corte suprema.

Mendonça foi alvo de uma confusão de conceitos, uma vez que avaliado sob uma ótica francesa, enquanto a laicidade à qual André Mendonça – assim como qualquer brasileiro – deve observância é a laicidade colaborativa brasileira. As diferenças entre ambas são identificadas pela doutrina, conforme se explica em Sistema político brasileiro: uma introdução, organizado por Lúcia Avelar e Antônio Octávio Cintra: “o Estado Laico reconhece o caráter transcendental e assegura sua efervescência espiritual no seio da sociedade, legitimando o fenômeno religioso na esfera pública e privada, muito diferente do modelo francês, que luta pela retirada do fenômeno religioso do espaço público”.

Evidente que, por questões teológicas, é possível que o tema seja debatido entre os círculos de religiosos e estudiosos. Entretanto, na ótica do Direito Constitucional e do Direito Religioso, a fala de André Mendonça apenas confirma o modelo brasileiro de laicidade, destacando a existência da ordem religiosa e da ordem secular. Afirmam Thiago Vieira e Jean Regina em Direito Religioso: questões práticas e teóricas: “A Constituição Republicana consagra no artigo 19, I, a separação entre as coisas (mundanas/seculares) do Estado e as coisas (espirituais/transcendentais) da igreja, respeitando, garantindo e protegendo as duas ordens distintas, mas com o mesmo objetivo (bem comum). Um de Ordem Material e outro de Ordem Espiritual”.

A alcunha de “terrivelmente evangélico” dada pelo presidente da República, em uma clara sinalização a esse público religioso, por um lado surtiu efeito, pois foi perceptível o apoio da ala protestante do cristianismo ao indicado, bem como de muitos católicos conservadores. Por outro lado, despertou o laicismo mascarado que habita em grande parte da mídia, grupos políticos e até de religiosos. Esses têm se demonstrado como verdadeiros fiéis de uma religião laicista, extrapolando o bom senso que o debate exige e apegando-se a conceitos que mais se parecem com dogmas de uma religião do que com uma construção racional sobre a teoria do Estado.

Na sabatina pela CCJ, podemos reconhecer que a maioria dos senadores entendeu mesmo que seu papel ali seria o de aferir os critérios jurídicos e constitucionais para a condução do mesmo à suprema corte. Entretanto, de maneira recorrente, alguns parlamentares citavam a fé do candidato, como se tal assunto fosse relevante para a sabatina. Ao fim, sobressaiu na arguição o currículo invejável do candidato e a inexistência de qualquer conduta que o desabonasse, que era o que de fato importava, cumprindo o primado maior do Estado Democrático e de Direito brasileiro. Sua aprovação na CCJ e no plenário do Senado mostra que todo o processo se deu dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, respeitando todos os princípios republicanos, inclusive o da laicidade estatal, além da observância das normas aplicáveis e do regime democrático.

Muito embora, como preleciona o conceituado doutrinador Eugenio Zaffaroni em Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos, ser “insustentável pretender que um juiz não participe de certa ordem de ideias, que não tenha uma compreensão do mundo, uma visão da realidade”, é absolutamente impossível imaginar que o novo ministro do STF se utilize da caneta para implantar uma teocracia, pois, como ele mesmo disse, “no Supremo, a Constituição”, de modo que fica evidenciado seu respeito ao Estado Democrático e de Direito, do qual é um dos maiores defensores.

Etimologicamente, “laico” se origina do grego primitivo laós, que significa “povo” ou “gente do povo”. De laós deriva a palavra grega laikós, de onde surgiu o termo latino laicus. Desse modo, a raiz da palavra nos leva a uma definição de laico, ou leigo, em relação àquilo que é inerente a qualquer que seja do povo. Temos, então, que laico é relacionado ao povo, à gente, pertencente a todos, e que não pode ser dominado pela religião ou por seus sacerdotes, como lembra Warton Hertz de Oliveira em Liberdade Religiosa no Estado Laico: Abordagem Jurídica e Teológica.

O erro dos adeptos ao laicismo de combate é concluir que no Estado laico os religiosos não podem participar da polis e da administração pública. Ledo engano! A democracia abraça a todos, inclusive os religiosos. Assim reforçam Vieira e Regina em sua obra Laicidade Colaborativa: da aurora da civilização à Constituição Brasileira de 1988: “algumas vozes se levantam contra um sistema de laicidade que reconhece e garante o exercício e protege a crença. Preferem o laicismo francês, ‘permitindo’ que o ser humano adore sua divindade longe dos olhos da sociedade. Ou outras que se levantam alegando que o Estado é laico e que não pode existir nenhuma relação ou identidade com nenhum credo”.

Fato é que a retórica antirreligiosa do laicismo é, em si só, uma religião, com seus próprios dogmas, e que se mostra agressivamente intolerante contra quem não comunga de seus dogmas. E, indo além, racionalmente, seus argumentos não resistem a um silogismo simples, tão frágeis que são. Eis a falácia lógica dos que gritam contra a indicação e aprovação de André Mendonça para o STF: 1. “Laico” significa não ser o Estado dominado pela religião; 2. Há cidadãos que se declaram religiosos; 3. Logo, os cidadãos religiosos não podem atuar no Estado e na arena pública. Porém, uma conclusão lógica acerca da aplicação do Estado laico aos cidadãos religiosos é esta: 1. “Laico” significa não ser o Estado dominado pela religião; 2. Há cidadãos que se declaram religiosos; 3. Logo, os cidadãos religiosos podem atuar no Estado e na arena pública sem, contudo, impor sua religião.

Não somente é impossível que qualquer cidadão atue na sociedade livre de suas próprias convicções pessoais, mas é deveras fundamental que seja assim, pois, sem isso, seria impossível o exercício do pluralismo político. Uma democracia só existe onde há diversidade de pensamento e respeito à consciência de cada cidadão, a fim de que esse possa contribuir para a sociedade, seja a consciência guiada por razões da fé, ou pela ausência de fé. Fato é que ninguém deixa seus valores pessoais na porta de casa para atuar em suas profissões no dia a dia, quer seja de serviço público ou da iniciativa privada, seja o cidadão um ateu ou um religioso de qualquer confissão.

Ou seja, todos que participam da vida política, tanto os que votam quanto aqueles que são votados, fazem-no de acordo com sua própria cosmovisão.

Jónatas E. M. Machado, diretor da Faculdade de Direito na Universidade de Coimbra, reconhece o fato de que o princípio da neutralidade ideológica e religiosa do Estado está́ atravessando grande turbulência teórica e dogmática. Ele coloca sua posição ao dizer que “o Estado Constitucional não pode ser absolutamente neutro em matéria religiosa, na medida em que ele mesmo depende de axiomas e pressuposições que só algumas visões religiosas do mundo conseguem garantir”. E, em Estado Constitucional e Neutralidade Religiosa: entre o teísmo e o (neo) ateísmo, Machado continua trazendo uma verdade sobre a democracia que deveria ser óbvia para todos, mas que alguns (ou muitos) ainda fazem questão de resistir, talvez propositadamente: “Numa sociedade democrática, as pessoas votam frequentemente, e concorrem a eleições, de acordo com as suas visões do mundo e os valores que delas decorrem, acabando isso por reflectir-se nos processos legislativo, administrativo e judicial, na política interna e externa e na política econômica, orçamental e fiscal”.

Ou seja, todos que participam da vida política, tanto os que votam quanto aqueles que são votados, fazem-no de acordo com sua própria cosmovisão. E, por mais que alguns insistam que somente sua visão de mundo é livre de pressupostos religiosos, o fato é que não há uma pessoa livre de premissas ou axiomas que pressupõe serem verdadeiros sem que possam provar-se certos pela objetividade científica. Ora, o cientificismo, alimentado pelo naturalismo filosófico, encaixa-se nessa realidade. E o próprio naturalismo filosófico, que afirma ser a energia, tempo e matéria tudo que existe, é uma crença em si. Timothy Keller, autor presbiteriano (tal qual André Mendonça), em sua obra Fé na Era do Ceticismo, reforça esse posicionamento: “Ainda que muitos continuem a invocar a exclusão de visões religiosas da praça pública, um número crescente de pensadores, religiosos e secularistas, estão admitindo que tal chamada é, por si só́, religiosa”.

A laicidade implica a neutralidade do Estado em matéria religiosa. A neutralidade pode ser compreendida em dois sentidos diferentes, ensina Maurice Barbier. O primeiro é a exclusão da religião do Estado e da esfera pública, que se classifica como “neutralidade-exclusão”. O segundo sentido refere-se à imparcialidade do Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com igualdade as religiões, tratando-se, neste caso, da “neutralidade-imparcialidade”. Por mais que muitos tentem fazer valer a primeira dessas neutralidades em nosso país, é este segundo modelo que o Brasil adota, e de forma colaborativa, conforme valores da nação lançados no preâmbulo da Constituição, e de acordo com o que está posto normativamente no artigo 5.º, incisos VI, VII e VIII, bem como no artigo 19, inciso I.

Os preceitos que inspiram o princípio da dignidade da pessoa humana carregam a influência de valores religiosos, como aponta Valmir Nascimento em Justiça Pública e o Papel da Religião Entre o Liberalismo de John Rawls e a Lei Natural de John Finnis, capítulo do recém-lançado Justiça e religião? Uma integração necessária: “o Estado Constitucional parte do princípio de que o ser humano é dotado de uma competência moral e racional que o distingue dos animais e objetos, e a liberdade é entendida como um princípio de autonomia moral a exercer dentro dos limites da razão e de valores morais fundamentais. Tal pensamento também possui o respaldo da cosmovisão judaico-cristã, para quem a razão humana é o reflexo da natureza racional de Deus.”

Por fim, André Mendonça, ao afirmar “Na vida, a Bíblia; no Supremo, a Constituição”, não deixou dúvidas acerca de qual neutralidade deve guiar sua atuação no STF: a imparcialidade, e não a exclusão da religião do seio da sociedade. Trata-se de uma aplicação do “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O novel ministro deixou claro que é possuidor de uma fé, e que não a negaria como muitos esperavam e desejavam. Sem embargo, porém, o ministro também demonstrou que é terrivelmente respeitador das instituições da República, da Constituição e, por evidente, da democracia.

Esta pressão atual para que o cristão deixe de atuar na esfera pública não apenas é feita em nome de uma compreensão distorcida da laicidade brasileira, mas revela também uma antirreligião que, na verdade, não passa de um ativismo laicista, igualmente religioso. A principal questão a ser marcada é que essa perspectiva que tentam nos impor não encontra abraço no pluralismo político e filosófico, berço de um Estado Democrático e tão caro para o Estado laico.

Thiago Rafael Vieira, Warton Hertz de Oliveira, Ezequiel Sousa Silveira, Alex Catharino, Fagner Sandes, Bárbara Alice Barbosa, Isaías Lobão e André Amaral são integrantes do Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).

Davi Dos Santos